“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”.[1]
Segundo a física, o som “é um fenômeno acústico que consiste na propagação de ondas sonoras produzidas por um corpo que vibra num meio elástico (especialmente o ar)”.[2] O som também é música aos ouvidos, é linguagem, comunicação, tom, ruído, barulho, ritmo, timbre, sonoridade.
Baseado neste conceito acredito que o silêncio é, ao mesmo tempo, um fenômeno mudo e também acústico. Ele é fechado em si mesmo e, a princípio, somente o autor do silêncio está apto a decifra-lo. Porém, se o indivíduo que está em silêncio propagar por meio de alguma onda sonora, isto é, alguma mensagem subliminar (um gesto, um piscar de olhos, um suspiro, um olhar peculiar etc.), o seu silêncio poderá ser captado pelo outro e decifrado.
Alguns exemplos corroboram esta ideia: os “casais ou grupos cúmplices”, cuja relação já é antiga, ou bastante compartilhada (marido e esposa, namorados, amigos de uma mesma turma etc.) podem se comunicar muito bem, e silenciosamente, por meio apenas do olhar; um gesto de “ok” pode expressar um agradecimento, ou que tudo está bem, sem nenhuma palavra. O choro agudo de uma criança, ou o choro recatado de um adulto, podem significar, num dado instante, a fome para o primeiro, ou algum tipo de perda para o outro, sem que precisem dizer nada. Se alguém está na rua e gesticula suas mãos para um táxi, ou ônibus, a mensagem silenciosa é captada pelo motorista que, em geral, atende ao seu sinal. Uma mulher que suspira e olha apaixonadamente para o seu amado, em silêncio, sem sombra de dúvida demonstra, sem precisar dizer qualquer palavra, o seu amor por ele. Em todos esses casos, e muitos outros que poderiam ser citados, acontece uma comunicação silenciosa, sem palavras.
Algumas pessoas lidam bem com o silêncio e outras, pelo contrário, muito mal. Lembro-me de um amigo que ficou alguns meses sozinho, numa casinha de campo longe da civilização, sem se comunicar com ninguém, apenas tendo como companhia os pássaros e, de vez em quando, alguns esquilos. Quando ele queria ouvir sua voz, e não só os seus pensamentos, ele cantava acompanhado de seu violão, ou conversava com esses bichinhos. O período que ficou em silêncio foi de muito aprendizado. Ele pode refletir profundamente sobre sua vida e as mudanças que gostaria de fazer dali para frente. A convivência consigo mesmo, em silêncio, o fortificou como ser humano e o auxiliou a olhar a vida de uma forma mais plena e, até hoje, ele guarda uma boa lembrança dessa experiência.
Uma paciente, outro dia, me disse:
– “Não tenho problema algum em ficar sozinha, gosto de conviver com o meu silêncio; ele também é uma companhia”.
Provavelmente, sem mexer os lábios, ela conversa consigo mesma, com suas próprias ideias; ouve seu silêncio por meio das palavras que se articulam para formar um pensamento. Pode, também, sem expressar palavras, perguntar e responder para ela mesma; pode se lembrar de algo engraçado e dar risada sozinha; criticar alguém à sua frente; dizer que não está entendendo nada da fala do outro; cantar uma música sem emitir som; ficar com raiva e se remoer por um tempão sem dizer nada a ninguém; e por aí vão as inúmeras conversas do seu silêncio pessoal.
Em comparação, outra paciente me disse:
– “Detesto ficar só. Fui criada numa casa barulhenta, com muita gente e ninguém ficava sozinha, nem na hora de dormir; era um entra e sai, naquele quarto, que até atrapalhava o sono da gente… E se, às vezes, acontece de eu ficar sozinha, aquele silêncio vai me dando um desespero, uma agonia, uma tristeza…”.
Mais um exemplo de pacientes em terapia de casal:
– “Eu sou mais falante do que ela (referindo-se à esposa) e fico muito incomodado quando pergunto uma coisa e ela não me responde de imediato. O tempo passa e ela fica pensando, pensando, em silêncio. Argh! Vou ficando com uma raiva… não suporto isso…”. E a esposa retruca:- “Eu tenho medo de falar o que penso e sinto e você ficar bravo comigo, por isso fico silenciosa e demoro para dar uma resposta…”
Estes exemplos demonstram que o silêncio é companhia para alguns e, para outros, motivo de desespero, angústia, tristeza, raiva ou medo e, talvez, muitos outros sentimentos agradáveis e desagradáveis. Portanto, as pessoas costumam significa-lo a partir das sensações experimentadas no contato íntimo com ele. Isso me leva a pensar que o silêncio tem vários sons e pode ser sentido como uma música prazerosa, suave, harmoniosa reproduzindo um momento feliz e meditativo de encontro consigo mesmo, ou uma música aborrecida, irritante, temerosa, angustiante, como um som grave, obtuso, representativo da escuridão que permeia o âmago do seu ser.
Costuma-se também dizer que os indivíduos muito falantes apresentam dificuldade em entrar em contato com seu silêncio interior, isto é, ouvir o som de seu silêncio e o que ele significa, ou o que ele está querendo lhe dizer. Geralmente mostram uma dificuldade em olhar, profundamente, para sua própria existência, se descobrir como sujeitos na vida e na relação interpessoal, com sonhos, desejos; de perceberem ou tomarem contato com suas frustrações, desilusões, perdas, insatisfações. É o momento da tomada de consciência silenciosa do seu “Eu”, de suas necessidades fundamentais, de seus sentimentos mais profundos, de questões sobre si mesmo, e tudo isso, nem sempre é agradável de pensar, sentir, ou descobrir. Pode ser muita coisa, pode ser demais escutar este silêncio, assim como diz Guimarães Rosa.
Se nesse exato momento em que escrevo sobre o silêncio, estou com ele, qualquer pessoa que me veja, dirá com maior probabilidade de acerto, que estou em silêncio porque estou estudando, escrevendo, concentrada naquilo que estou fazendo. Todavia, mesmo estando em concentração silenciosa ela, repentinamente, pode por segundos, desaparecer (embora eu ainda permaneça em silêncio) e dar lugar a qualquer outro pensamento. Então, o meu silêncio o é apenas para os outros. Eles não são capazes, grande parte das vezes, de desvenda-lo, mas eu me desfruto dele porque sou a qualquer momento da vida, enquanto em atitude silenciosa, dona dos meus pensamentos que só tem eco para mim. Portanto, o meu silêncio – fazendo uma retórica – é silencioso apenas para aqueles que não podem ouvir sua sonoridade. Mas, para mim, ele ressoa claramente, ele é vida, é ideia, é “pensa-a-mente”, é movimento dinâmico, tem som e eu ouço sua melodia dentro de minha cabeça. E, para um mesmo estímulo, ou estímulos diferentes, ele pode apresentar, em um dado instante, significações diversas que só eu sou capaz de decifrar em toda a sua essência.
Dra. Elisabeth Sene
Médica Psiquiatra (M.D.) e Psicoterapeuta
[1] Guimarães Rosa, J. Grande Sertão: Veredas. R. de Janeiro, Nova Fronteira, 1956.
[2] Buarque de Holanda Ferreira, A. – “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”. R. de Janeiro. Nova Fronteira. 2ª. ed. revista e aumentada, 1986.