Não me conformo com essas mortes… Pessoas na rua, no seu local de trabalho, no seu lar estão sendo mortas bestamente. A barbárie está instalada, há muitos anos, no nosso país… Pasmem, mas segundo dados da UNESCO[1], um brasileiro é assassinado a cada 13 minutos! Dá para acreditar?
O medo toma conta das pessoas que não veem saída para tanta atrocidade. Embora nossas vidas estejam enjauladas em residências aparentemente protegidas, não há mais nenhum local seguro, nenhum. Não adianta fugir para o campo, não adianta não sair de casa. Para qualquer lugar que você vá, conte com a sorte, ou com Deus, para os que acreditam.
Quem são esses indivíduos que matam friamente, glacialmente, que não se importam com o outro que está à sua frente, indefeso, desarmado, inocente? (Que pena, quanta rima triste!)
Quem são esses facínoras que matam sem escrúpulos, ora com um tiro na cabeça, ora esquartejando, ora colocando fogo no corpo do indivíduo (esta, a “mais nova moda” de matar), independente dos R$30,00 ou R$3.000,00 que ele tenha, na conta corrente, ou no bolso?
Lamentavelmente o sangue exposto pelas mídias, nas suas reportagens, tem provocado sobressaltos e revoltas, mas não tem levado a soluções.
A violência física e psicológica está no meio do povo, na sociedade. Parece que ninguém escapa: o violento pode ser um estudante enlouquecido, uma dona-de-casa boazinha, um amante traído, um trabalhador braçal indignado, um profissional liberal explosivo, drogaditos sem lucidez, desempregados desesperados e muitos outros. E os atacados, que sofrem pelas agressões, perdas e traumas, e que também fazem parte da mesma sociedade, gritam desesperadamente: “Chega de latrocínios!” “Queremos justiça com letras maiúsculas!”.
Se guerra e violência caminham juntas, assim como nas fábulas de Esopo[2], trazendo não somente mentiras, contravenções, corrupções, mas perversidades sem limites, atos atrozes, desumanos, a pergunta que não quer calar, protesta: – Onde estão nossos governos (municipal, estadual e federal)? Eles fazem de conta que elas – violência e guerra – só existem lá para os confins do oriente médio, todavia, nós do povo, sabemos que a violência está aqui ao nosso lado, pertinho e integralmente impune. Esses atos violentos desrespeitam, violam o bem-estar, agridem física e moralmente o indivíduo, estupram sua dignidade, devassam seu psiquismo, corrompem sua alma.
Parece que não sabemos mais distinguir quem é bom e quem é mau. As faces, os gestos, as roupas, os comportamentos não caracterizam mais o suposto delinquente.
Onde estão os cidadãos decentes, do bem? Não existem mais? Estão escondidos temendo a própria vida? E os cidadãos do mal? Ainda continuam querendo levar vantagem? Só querem receber direitos e não cumprir com suas obrigações para o fortalecimento de nossa sociedade? (Eles sabem que não serão punidos, na medida proporcional dos seus atos e que nossas prisões não funcionam. Eles sabem que a impunidade corre solta, motivo bastante para continuarem com suas crueldades).
Chauí[3] menciona que a consciência moral somente existe para as pessoas que sabem distinguir entre o bem e o mal, o certo e o errado, o permitido e o ilícito. Além do mais, elas são capazes de identificar e julgar suas condutas, e agir segundo os princípios morais da ética, responsabilizando-se pelas consequências de suas atitudes.
Os que matam sem razão, simplesmente pelo prazer de matar, em geral apresentam “frieza de sentimentos”, como disse um dia o psiquiatra alemão Kurt Schneider. Esses são, segundo ele, os “psicopatas insensíveis”[4] destituídos de qualquer compaixão pelo outro, ou vergonha e arrependimento pelas suas ações. Não possuem consciência moral.
Mas convém também refletir sobre os pensamentos e sentimentos monstruosos que temos dentro de nós. Se violência gera violência, quantas vezes não vemos manifestações de ódio surgindo no interior de nós mesmos exigindo vingança, agressões, punições desmedidas à semelhança dos procedimentos brutais do delinquente? Quantas vezes não esboçamos fantasias de sofrimento àqueles que nos feriram, ou causaram a morte de nossos queridos? A provável distinção entre nós é que tentamos lutar contra essas selvagerias internas, abstrair nossos desejos corrosivos (elaborando as perdas, os traumas, os ataques), identificar, julgar e transformar nossas fantasias, sentimentos e anseios perversos de morte a outrem. E, se conseguimos isso, é porque, um dia, nos foram verdadeiramente transmitidos ensinamentos sobre a Consciência Moral e Cidadania, sobre o Amor e o Respeito ao outro.
Todos os acontecimentos trágicos, do nosso frequente cotidiano, me fazem lembrar de Leviatã, o monstro mitológico citado no Antigo Testamento. Ele é o mais poderoso monstro aquático caracterizado de diversas formas, como um crocodilo, dragão marinho, serpente, baleia, demônio etc. Ele provoca o terror nos marinheiros, as ondas do mar balançam quando ele se levanta, e nenhuma arma consegue feri-lo, tamanha sua animosidade e violência. Para vencê-lo, somente outro monstro, tão forte ou mais potente do que ele, desta vez, um terrível monstro terrestre, denominado Behemoth.
Os seres humanos-inumanos de nossa sociedade, que levam sofrimento às pessoas, são monstros semelhantes ao Leviatã, que precisam ser extintos para não continuar causando dor física e moral aos inocentes, na sua maioria.
Nossa história é verdadeira, e não mitológica, no entanto parece que para aniquilar com toda a monstruosidade humana necessitamos de um Behemoth (ou de vários!). Infelizmente ainda precisamos descobrir como ele seria genuinamente representado.
Seria um grande movimento do tipo “Diretas já” que poderia acordar o povo para a máxima “o crime não compensa”? (até agora parece que ele, de certa forma, compensa…).
Será que o Behemoth seria a inserção de uma mídia de amplo alcance, repetitiva, que atingiria os inúmeros recantos do país, promovendo uma mudança radical na educação, levantando emblemas sobre os conceitos de cidadania, ética, moral, amor, humanidade, respeito, obrigações e tantos outros itens relacionados à civilidade? Se até este momento não conseguimos punir ou exterminar com os leviatãs de hoje, que possamos, pelo menos, dar início a medidas preventivas dirigidas a todos que ainda são passíveis de transformação, a fim de que não se convertam em futuros criminosos.
A Folha de São Paulo publicou um “Manual da Convivência Urbana”[5] (também denominado “O grande guia das pequenas gentilezas”), que ensina o cidadão a ter mais cuidado e delicadeza com o outro nas ruas, nos restaurantes, na internet, nos condomínios etc. Embora a iniciativa seja válida, precisamos muito mais do que isso!
A resolução do problema é de extrema complexidade e não podemos ser simplistas fornecendo unicamente fórmulas educativas. O buraco está mais embaixo, pois os exemplos que temos, atualmente, na família, na política, nas empresas, nos corredores sociais das mais baixas até as mais altas classes, só decepcionam. Precisamos, governos e sociedade brasileira, reverter este quadro repugnante, lutar contra todo tipo de Leviatã, desenvolver um conjunto de medidas que realmente resolvam, para que possamos ter orgulho de nosso país, admiração pelas cores e estrelas de nossa bandeira e credibilidade no lema impresso na faixa branca.
Elisabeth Sene
[2] Esopo. Fábulas. Porto Alegre, L&PM Editores, 2001.
[3] Chauí, M. Convite à Filosofia. São Paulo. Ática: 2001, 12ª ed., 337.
[4] Schneider K. Psicopatologia Clínica. São Paulo, Mestre Jou, 1968, 57.
[5] Folha de São Paulo, “Revista São Paulo”, de 2 a 8 de junho de 2013.